Kino: Coliseu ―Avengers―

Capítulo 04: Coliseu
―Avengers―

Uma estrada dividia a margem do rio e a floresta.

A corrente cristalina fluía sem se encontrar com a densa floresta. Desse modo, o aterro parecia cumprir bem o seu trabalho de dividir a estrada do resto. A estrada encontrava-se num nível um pouco acima do da floresta e consideravelmente acima da superfície da água.

A superfície da estrada era razoavelmente sólida, quase completamente prensada. Sua largura também era espaçosa. Parecia bastante frequentada por veículos pesados.

Neste momento, porém, um único motorrad (nota: veículo de duas rodas, não voa) a percorria em altíssima velocidade.

A pessoa dirigindo o motorrad dava as costas para o sol brilhante que acabara de dar o ar de sua presença no horizonte. Estendendo uma longa sombra na direção em que viajavam.

Seu físico era esbelto e, por consequência, sua sombra alargada também. Vestia um sobretudo marrom-claro de mangas compridas e cujas laterais batiam nas coxas. Em sua cabeça, levava um chapéu com uma pequena viseira, que apesar de se parecer a um chapéu de aviador, também se parecia aos chapéus militares. Para que não saísse voando pela força do vento, as laterais que protegiam as orelhas estavam amarradas embaixo de seu queixo. Por último, vestia também óculos de proteção, cuja armação cinza já havia descolorido em algumas partes.

O ar úmido da manhã na floresta atingia em cheio o rosto esbelto e destemido.

— Mas que estrada boa! Só que você tá puxando demais o acelerador!  — gritou o motorrad para seu condutor.

— O que disse? Hermes, já ficou velho demais?  — o condutor gritou em resposta sem diminuir a velocidade nenhum centímetro por segundo. Estavam na última marcha. O motor da moto tão ruidoso como se nem tivesse um silenciador embutido e vibrando tão violentamente que dava a crer que estivesse quebrado.

O motorrad não possuía banco traseiro, no lugar deste havia um bagageiro. Nele estavam amarrados uma grande mala e um cobertor enrolado. Para carregar ainda mais coisa, duas caixas haviam sido instaladas nas laterais; era tudo muito pesado. E, em vista da grande velocidade, todo o equipamento chacoalhava implacavelmente. Um pequeno copo de plástico preso a uma rede também sacolejava freneticamente.

Uma leve saliência (montanha, obstáculo como pista de corrida) levantava-se na estrada. A pessoa dirigindo seguia em sua direção em linha reta sem diminuir a velocidade e fez o motorrad pular.

O corpo de metal ficou no ar, avançou vários metros e aterrissou com um baque sonoro.

— Ah!  — queixou-se o motorrad chamado Hermes. Com isto, a pessoa finalmente soltou um pouco o acelerador. Diminuída a velocidade justo no meio minuto anterior, disse com uma agitação ininterrupta:

— Diga, Hermes. Tudo bem por aí?

— Corta essa, Kino! Até achei que o meu quadro fosse quebrar!  Hermes respondeu com bastante indignação.

— Não foi nada, nem quebrou. Mais importante é que chegamos até cem! Faz tempo, né? Uma proeza e tanto estando lotados de bagagem. Pode se gabar, Hermes — o motorista chamado Kino disse sem maiores preocupações enquanto diminuía uma marcha.

— Você sabia, Kino? No mundo dos motorrads nós chamamos a velocidade máxima de “velocidade da quebra” — contestou Hermes com calma.

— Desculpe, Hermes — dando duas batidinhas leves no tanque com muita compostura.

— Por que tanta pressa?

— Mesmo com isso, tem vezes em que a gente precisa mostrar a nossa potência máxima. Senão, quando menos esperar a gente enferruja.

— Ah, é? — — Hermes, nem um pouco impressionado, respondeu como se lesse suas palavras de um papel.

— É, sim. E também já estamos chegando no próximo país — disse Kino parecendo contente.

— Seu já é muito duvidoso — reclamou Hermes, no que Kino girou sua mão esquerda para a frente.

— Bem ali, olha. Para onde Kino apontava havia uma pequena encosta e à frente dela viam-se muralhas. Ali havia uma bacia rasa, e as muralhas cinzas circundavam a cidade dentro da densa floresta de céu azul escuro. Lá dentro, as construções se amontoavam, e no centro de tudo via-se um círculo gigante.

— E queria chegar pela frente… — disse Kino com uma expressão de completa admiração.

Sem interesse por Kino ou pelos países que Kino queria frequentar, — Chegando lá, quero é descansar num lugar escuro, fresco e com a umidade adequada — reclamou.

◆◆◆◆◆

— O que disse?  — Kino, vestindo sua jaqueta, voltou a perguntar em voz alta para o jovem soldado que guardava o portão.

— Por mais que eu repita, a história não vai mudar. Você tirou um visto de entrada. Isso automaticamente te inscreve. É assim que funciona — declarou ele.

— Então vocês estão me fazendo participar dessa competição?  — Kino voltou a questionar com surpresa e choque visíveis.

— Isso mesmo, rapaz. Veio até este país sem saber disso?  — O soldado perguntou para Kino, o deboche completamente óbvio em sua voz.

Sem se preocupar em esconder seu aborrecimento, disse de maneira assertiva: — Poderia não me chamar de rapaz?  Me chamo Kino.

— Tanto faz. Você vai participar. Aliás, já sabe o que acontece com os que não se apresentam?  — perguntou o soldado dando gargalhadas.

— Como eu vou saber? — Kino perguntou e o guarda respondeu com um sorriso do mais puro deleite.

— Vou ser bonzinho e te contar: Passam o resto da vida como escravos daqui! Como covardes que fugiram sem lutar.

— Por que isso?

— Não é óbvio? São as regras deste país. Aliás, a pena por desobedecer é de morte.

Kino e Hermes fizeram no portão todos os procedimentos para o visto de entrada no país que lhes deu tanto trabalho alcançar. Quando terminaram tudo, o soldado que cuidava do portão avisou Kino: — Seu número é 24! — Chocado com a ignorância de Kino, ele começou a explicar.

A cada três meses acontece uma competição para ganhar a cidadania deste reino. As pessoas que querem morar aqui lutam no coliseu, e a pessoa que avançar todas as etapas até o final e ganhar se torna um novo cidadão.

A competição dura três dias. No primeiro dia acontecem a primeira e a segunda lutas. No dia seguinte, acontecem as lutas três e quatro. No terceiro e último dia, a última luta começa ao meio-dia. Está permitido usar qualquer tipo de arma. No entanto, não se permite ver as lutas dos demais competidores.

Você só pode se render se o seu oponente aceitar a sua rendição. Além disso, você também perde se não aparecer na luta. Geralmente, quando isso acontece quer dizer a pessoa já morreu. Os que tentarem fugir da competição serão perseguidos como criminosos fugitivos e mortos imediatamente.

Quase todos os habitantes do reino vão até o coliseu assistir a competição. Logicamente, o rei também assiste desde seu camarote particular. Por mais que as balas perdidas sempre atinjam alguns dos habitantes que vão para assistir, e alguns desses até morram, ninguém reclama de nada.

O último sobrevivente é premiado pelo rei em pessoa com uma medalha que prova sua cidadania. Nesse momento, o vencedor pode declarar uma única lei nova a este reino. Desde que não contradiga nenhuma lei existente, pode ser qualquer coisa. Isso faz parecer que os cidadãos participam da gestão do país, mas a verdade é que não passa de um prêmio, cuja maioria esmagadora de vencedores até agora só usou de maneira egoísta com regras como “a partir de agora sempre haverá uma casa para mim”.

Hoje é o último dia das inscrições. Até o final do dia, todos aqueles que passarem pelo portão estão automaticamente inscritos na competição.

◆◆◆◆◆

— E então, vai participar? Ou prefere ir pro barraco dos escravos? Hein, Kino? Pode ser a primeira pessoa da história a escolher a escravidão — zombou o soldado. Quando menos, um grupo de soldados com muita falta do que fazer se reuniram ao redor deles. Todos cheios de sorrisos vulgares. Moviam-se exageradamente para produzir um clique-claque de persuaders (nota: arma de fogo) para se ostentar.

— Há quanto tempo realizam estes jogos? —  Kino perguntou ao primeiro soldado, ignorando todos os demais.

— Faz uns sete anos. E não chame nossa cultura de jogo. O que está insinuando sobre a cidadania da nossa cidade gloriosa?

— Cidade gloriosa? —  Kino fez careta para o guarda apenas uma vez.

— Ouvi dizer que esta cidade era cercada por florestas exuberantes e ricas, que proviam tudo. E que as pessoas que moravam aqui eram modestas e levavam a vida honesta e maravilhosamente.

Outro guarda atrás deles entrou na defensiva. — Ei, ainda é assim. Não reinvente a nossa história. Mesmo sem fazer nada ainda tem comida para todos, moramos no paraíso! É gentalha como você que estraga tudo.

Em tom calmo, Kino perguntou a todos ali presentes. — Aconteceu alguma coisa sete anos atrás?

O jovem soldado olhou de volta para seus colegas e deu de ombros como se dissesse “e agora?”. Entre eles um soldado de meia idade foi à frente e disse — Vou te dar uma aulinha: Sete anos atrás, o nosso grandioso rei atual se cansou da falta de graça do reino, matou o rei antigo e tornou o país mais excitante. Desde então uma multidão de pessoas apareceu querendo morar aqui. Não tem como dar a cidadania pra toda essa gentalha. Então fazemos com que lutem no coliseu e, depois do bom espetáculo, damos a cidadania ao mais forte de todos. Os demais vão pro túmulo — disse e aproximou o rosto de Kino. — E aí, vai participar, rapaz?

Sem a mais mínima mudança de expressão Kino respondeu: — Sim, entendi. Tenho uma última pergunta.

O soldado mandou perguntar de maneira brusca e com cara de desinteresse.

— Todos os participantes até agora consentiram com esses termos de morte? Ou eram viajantes como eu que vieram mal informados?

Ao ouvir isso os guardas primeiro seguraram o riso, mas logo soltaram gargalhadas. Um deles não aguentou e discursou — Hehehe, vez ou outra tem otários como você, mas aí a gente deixa entrar sem explicar nada. Todos morrem na primeira rodada. Dizem que se rendem, pedem clemência aos prantos, até parece que acreditam que o oponente vai mesmo poupar a vida deles. Lembro que uma vez um casal chegou de carruagem e teve a má sorte de se encontrar na primeira rodada. Ele salvou a esposa, mas terminou morrendo na rodada seguinte. Foi uma obra prima!

Ao relembrar a segunda metade da história, tão engraçada para eles, o soldado foi incitando o riso dos demais colegas. Todos se dobravam de tanto rir. Ninguém entre eles percebeu os olhos de Kino se estreitando perigosamente.

Desde o começo, quando lhe disseram que motorrads não tinham nada a ver com essas tradições, Hermes ficou calado. Kino percebeu que, inusitadamente, essa atitude dele tinha lhe irritado e muito.

Com isso, antes de que pudesse dizer qualquer coisa, Kino disse:

— Levem-me até lá.

— Santo óleo de motor — Hermes falou sozinho.

Um dos guardas que ria como idiota parou de rir e perguntou — Hein, disse alguma coisa? —  olhando para Kino. Então surpreendeu-se com o olhar penetrante de Kino, frio como o gelo.

— Disse que quero que me levem até lá para participar — Kino disse para o soldado com indiferença.

O riso desapareceu dos soldados, todos olharam para Kino. O silêncio continuou por um tempo, até que um soldado tentou zombar de Kino.

— Opa, opa, o rapazinho aqui quer lutar de verdade? E pensa em vencer? Tem armas aí? Ou tá querendo ganhar dos oponentes com esse rostinho bonitinho? Não vai se achando tudo isso.

No instante em que o soldado que perguntou isso ia gargalhar um estouro ecoou. Todos os seis capacetes que estavam pendurados na parede voaram para longe. Uma fumaça branca pairava pela sala.

Os soldados passaram alguns instantes sem a menor ideia do que tinha acontecido. Então, quando finalmente registraram os capacetes girando no chão e o zumbido nos ouvidos, notaram também que Kino segurava uma persuader na mão direita. Um revólver de seis tiros que Kino chamava de Canon.

— Isso basta? —  disse Kino guardando a Canon que tinha acabado de disparar no coldre da coxa direita.

— Desgraçado!

Dos soldados que entenderam a situação, foi o jovem soldado que encontraram primeiro que tentou agarrar Kino. Só para no segundo seguinte ter uma persuader apontada para a cabeça. Kino segurava uma persuader automática de tiro único, munição .22LR e cano fino na mão direita.

Lentamente, Kino disse ao soldado de rosto e corpo congelados e aos demais soldados ainda pasmos:

— Vou participar dessa competição de vocês.

◆◆◆◆◆

— Mas que lixo de lugar — foi a primeira coisa que Hermes disse após atravessarem o portão.

O que recebeu Kino e Hermes à cidade foi uma montanha de lixo. Não um depósito de lixo propriamente dito, mas a cidade em si era puro lixo. Prédios, estradas, tudo sujo, obviamente sem manutenção há anos. Alguns quantos moradores dormiam imundos pelas ruas. Ainda era cedo pela manhã e ninguém se movia, a cidade estava silenciosa. Alguns cachorros morbidamente obesos faziam um banquete entre os restos de comida. Para completar a visão, tudo fedia.

— Tal cidade, tais pessoas, né, Kino? Não, pera, devia ser ao contrário — soltou Hermes quando viu que o guarda que os guiava não parecia se importar com nada. Kino seguiu em silêncio empurrando Hermes atrás do guarda,

Andaram um tempo pelas ruas sujas até chegarem ao coliseu. Era a estrutura circular viram desde longe. As arquibancadas eram altas, mas vistas de perto dava para ver que não estava em perfeito estado, com buracos aqui e ali e as vigas enferrujadas de ferro apareciam entre as falhas do cimento. Alguns dos lugares mais altos já cediam sob o próprio peso. Uma construção muito mal feita.

— Não conheço esse arquiteto não, mas sei que ele comprou o diploma. Também sei que tem péssimo gosto para design — Hermes expôs sua mais honesta opinião.

◆◆◆◆◆

Guiados pelo subterrâneo do coliseu, Kino entendeu que ali eram os aposentos dos competidores. Os quartos, porém, estavam mais para celas do que quartos de hotel ou pousada. Um colchão de palha com palha saindo para todos os lados, uma janelinha pequenina e, o mínimo esperado de um país rico em água, uma torneira e um vaso com descarga. O lugar era escuro e de temperatura agradável, sem contar a já esperada umidade de um local desses.

— Que cidade esfarrapada — Hermes comentou para Kino depois que o guia foi embora. Kino desvestiu e dobrou o casaco. Por baixo dele vestia uma jaqueta escura e um cinto grosso preso à cintura.

O cinto tinha muitos bolsos e do lado direito da coxa estava o coldre da Canon. Nas costas havia outro coldre para a persuader que Kino chamava de Pessoa da Floresta. O cabo da Pessoa da Floresta ficava sempre para cima.

— Já foi diferente. Um lugar maravilhoso que todos os viajantes queriam conhecer — disse Kino com indignação enquanto se sentava na cama e tirava a Pessoa da Floresta com a mão esquerda. Tirou o carregador, destravou a alavanca de segurança, removeu o ferrolho e tirou a única bala de dentro.

— Aí ao vir com toda a boa vontade do mundo encontra isto. Parece até que tem um rei completamente diferente do rei anterior.

— Pode ter sido isso.

Kino tirou a bagagem de cima do Hermes. Tirou cinco carregadores para a Pessoa da Floresta e, uma a uma, colocou balas dentro de cada.

— Você tá falando sério, Kino?

— Sobre o quê?

Kino agora pegou a Canon. Moveu todas as partes que fixavam o centro da arma e removeu o tambor.

— Sobre essa competição. Entendi que te ofenderam e feio, Kino, mas não é pra se envolver com este país maluco. Aleije bem o seu primeiro oponente, quando ele estiver para se render, renda-se primeiro. Aí a gente pode dar adeus a este lugar.

— É, também tem essa alternativa. — Kino pegou o tambor da Canon e tirou dois tambores vazios de um dos bolsos. Colocando um deles na Canon disse — Mas essa vai ser minha última alternativa.

— Então pretende participar a sério?

— Sim, vou até onde der. Se durar menos de três dias, posso até chegar à final.

Nas seis recamaras vazias do tambor, Kino injetou um líquido explosivo verde com uma seringa. Depois disso colocou um pedacinho de feltro e balas em cada buraco.

Kino agora trabalhou na primeira metade da Canon, puxou a alavanca embaixo do tambor para baixo ao mesmo tempo em que usava um palito para empurrar todas as balas para dentro.

Empurrou o suficiente até que não transbordasse e, com isso, juntou as duas metades do tambor. Antes, porém, aplicou óleo generosamente. Isso evitava que o fogo da explosão voasse para fora na hora do disparo.

Em seguida cobriu a parte onde o cão batia na parte de trás da recamara com uma pequena capinha. Isso era chamado de detonador, e a faísca gerada pelo cão incendiava a pólvora líquida. Em vez de colocá-los um a um, desta vez colocou primeiro os detonadores que estavam numa lata em um carregador dedicado bem fino. Então usou esse carregador dedicado nas partes traseiras do tambor.

Kino, que trabalhava com a máxima concentração em suas persuaders, ouviu de Hermes.

— Fazer o quê… Depois que você decide algo, nada te faz mudar de ideia.

Kino checou o funcionamento da Canon. Riu como se tivesse se lembrado de algo e disse.

— De vez em quando faz bem testar suas habilidades ao máximo. Senão, quando menos esperar a gente enferruja.

Ao ouvir isso Hermes recitou — É mesmo? — monotonamente como se lesse sua resposta.

◆◆◆◆◆

— Esse é o rei?

Kino caminhava em direção ao coração do Coliseu olhando para o homem sentado bem no meio das arquibancadas. Numa área fechada que parecia ser para os nobres, vestia roupas espalhafatosas para um homem na meia-idade e tinha uma coroa na cabeça.

Era uma coroa simples e, portanto, de muita elegância. Portanto, também, não combinava em nada com as roupas espalhafatosas que ele trajava.

De ambos os lados dele sentavam-se duas jovens com roupas igualmente espalhafatosas. O vidro que fechava a área nobre refletia a luz do sol.

— E esses os súditos gloriosos.

Kino girava o pescoço lentamente. Homens e mulheres de todas as idades, todos excitados para a matança que veriam, lotavam todos os assentos das arquibancadas. Clamavam eufóricos por sangue.

◆◆◆◆◆

Kino deixara o quarto subterrâneo pouco antes disso ao chamarem seu número.

 Hermes disse — Não vejo graça em assistir isso, pode ir. Só vê se não morre — e escolheu descansar no conforto do quarto.

◆◆◆◆◆

O centro do Coliseu era um campo circular salpicado de escombros de construções, restos de veículos e outras tralhas. No meio havia outro círculo de vinte metros de diâmetro completamente limpo.

Os competidores paravam-se dentro do círculo ou no perímetro dele e o jogo começava.

Antes de chegar lá, Kino estudou seus arredores minuciosamente.

Do outro lado apareceu seu oponente, um homem enorme que parecia mais uma massa de músculos humanoide com cabeça acoplada do que um homem. Seu torso estava completamente exposto e sua cabeça completamente raspada brilhava. Carregava uma corrente grossa com uma bola gigante de ferro, do tamanho de uma criança, na ponta. O homem foi arrastando a corrente com bola até chegarem aonde ele estava. Então ele olhou para Kino.

— Ei, ei, o que é isso? Esse pirralho aí quer me enfrentar? —  gritou eufórico pela vitória aparentemente já obtida.

— Sim, senhor. Tenho duas perguntas antes de começarmos a batalha. Primeira pergunta: por que veio a este país?

O grandalhão só conseguiu grunhir confuso para Kino.

— Perguntei por que veio a este país.

— Você é idiota? Claro que pra matar idiotas como você e virar cidadão daqui — disse incrédulo.

— Certo — Kino assentiu —, segunda pergunta: não quer se render?

— Como é?

— Se você se render, pode sair daqui ileso.

O grandalhão boquiaberto não respondeu. Puxou a bola de ferro mais para perto de si e começou a girá-la. Começou devagar e aos poucos foi ganhando ímpeto. A corrente girava chocalhando acima da cabeça do grandalhão.

Kino encolheu os ombros e tocou Canon de leve com a mão direita.

A audiência finalmente se calou.

Um trompete soou anunciando o começo da luta.

— Morraaaaa! —  gritou o grandalhão e quase na mesma hora os músculos de seu corpo tremeram. A bola de ferro, que vinha diretamente na direção de Kino, não voou perto. Voou numa parábola perfeita na direção oposta e caiu amassando os restos de um carro queimado.

— Uh… — Demorando para entender o que aconteceu, o grandalhão olhou para o resto das correntes em sua mão. Puxou a ponta para si e viu o corte perfeito. — Hum… — murmurava olhando para Kino. Canon fumegava na mão direita de Kino. Compreensão passou pelo rosto do grandalhão, ele apontou para a ponta da corrente e perguntou — Você atirou?

Kino respondeu — Sim.

O grandalhão apontou em seguida para a bola de ferro ao longe.

— Por isso que voou?

— Sim. Gostaria de se render? —  perguntou Kino.

— Sim, por favor — o grandalhão respondeu de imediato.

◆◆◆◆◆

— Olha só, uhu, meu oponente é um moleque. Uhuhuhu!

O oponente da segunda rodada que enfrentou Kino ao entardecer disse quase as mesmas palavras que o grandalhão, mas com risadas ridículas. Desta vez era um homem alto e magro com uma crista de cabelos roxos.

Não trazia nenhuma arma nas mãos. Vestia preto dos pés ao pescoço. No abdômen, porém, trazia várias pecinhas de ferro coladas.

Cada pecinha era fina e do tamanho de um palmo com uma leve curvatura bem no meio. Tão rentes e próximas que pareciam escamas ou partes de uma armadura.

Kino não olhou para seu oponente, sua atenção estava fixada nas peças de metal.

Com isso, o homem pegou uma delas e a lançou na horizontal. Ela voou girando e deu uma volta repentina voltando na direção original. O homem jogou o braço esquerdo para trás e o girou para o lado. Do braço até o pé esquerdo descia um tecido grande como as asas de um esquilo voador.

Ele cruzou as pernas e deu uma volta elegante para a direita. A peça acertou o pano como se tivesse sido sugada por ele e ali ficou colada. O homem levou a mão esquerda até o ombro direito e com a mão direita deu tapinhas no abdômen. Quando ele removeu a mão, aquela pecinha havia voltado para seu lugar original.

— Uhuhu. Viu tudo? Minhas shurikens feitas à mão, todas voltam obedientes para mim.

Kino fez uma cara de desgosto, então sugeriu rápido:

— Renda-se, por favor, eu vou aceitar.

— Pois é, quero não. Por que você não se rende? Mas só aceitar a rendição… do seu fantasma. Uhuhuhuhu —

respondeu o homem aos risos. Ele gesticulou ambas as mãos para o abdômen, relaxou a postura e levantando apenas a cabeça olhou feio para Kino.

Kino atacou com Canon na mão direita.

O trompete tocou anunciando o começo da luta.

Nesse instante o homem pegou uma das shurikens com a mão direita e mirou em Kino. Em seguida voltou a mão para o abdômen e continuou a atirar. Tão rápido que mal se viam suas mãos.

Kino desviou correndo para a direita. Não demorou para as shurikens ganharem velocidade com a rotação. O homem atirou uma e outra vez, desta vez apontando para o lado direito de Kino. Kino desviou de todas dando passos para a esquerda.

Ele não jogou todas as shurikens, metade delas seguia presa nas roupas dele. Seu tronco girava de um lado ao outro. Finalmente gritou atiçando.

— Uhu! Vou jogar o resto quando as demais estiverem voltando! Vai conseguir desviar de ataques vindos de ambos os lados?

Kino olhou rapidamente para trás, viu as peças fazendo a curva em pleno ar e voltando.

— Vê se morre! —  gritou ao jogar o restante das armas.

As shurikens voaram direto para Kino.

Kino balanou a cabeça com muita decepção e se jogou ao chão.

— Ahein?! —  foi o som estranho que o homem soltou.

— Se eles sempre voltam até você, fica óbvio que nenhum deles vai tocar o chão — Kino disse para si.

 Uma a uma as shurikens passaram zumbindo por cima da cabeça de Kino nesse instante.

Também no mesmo instante em que elas se colaram na roupa dele, Kino atirou ainda no chão com a Canon.

Um estouro grande, fumaça branca e o braço direito de Kino movendo-se.

A bala acertou uma das peças de metal bem no centro das costelas dele. O choque do impacto mandou a peça para dentro da barriga.

— Ugh! —  apenas conseguiu gemer, seus olhos e boca escancarados, congelados naquele segundo. Começou a cambalear meio inconsciente. Kino observou o homem balançando para os lados como um metrônomo e atirou na coxa direita dele.

O homem tremeu com o segundo tiro e caiu sangrando pela perna.

As shurikens restantes passaram inofensivas por cima dele.

◆◆◆◆◆

Kino voltou para um quarto mais escuro, então acendeu uma vela.

Descansou Canon e Pessoa da Floresta na cama e tirou sua jaqueta. Desmontou Canon e instalou o novo tambor.

— Hein, hã? Ah, é você, Kino. Voltou que horas? —  perguntou Hermes ainda sonolento, ele tinha dormido profundamente.

Remontando Canon, Kino respondeu — Tem pouco tempo. Decidi que vamos passar a noite aqui.

— Achei que ia fazer isso mesmo. Então partiu dormir de novo? — perguntou Hermes ainda sonolento.

◆◆◆◆◆

Na manhã seguinte, Kino acordou ao raiar do dia.

O quarto ainda estava escuro, mas foi clareando com o sol erguendo-se no céu.

Kino limpou e recarregou o tambor que usara na Canon no dia anterior.

Seu desjejum foram as comidas enlatadas que sempre trazia consigo. Exercitou-se alongando todos os músculos com tranquilidade. Depois dos exercícios praticou com Pessoa da Floresta e depois com Canon.

Passou mais um tempo até o guarda finalmente aparecer.

Hermes dormiu o tempo todo.

◆◆◆◆◆

O oponente do segundo dia olhou para Kino sem dizer nada.

Um homem de meia-idade, baixinho e robusto. Tanto o cabelo quanto a barba castanha eram compridos, mas ainda pareciam longe do tamanho máximo. Seu rosto era todo enrugado.

Vestia um manto folgado e levemente sujo. Ele carregava algo nas costas, era o único lugar onde o manto se inchava de maneira desnatural. Por algum motivo, tinha nas mãos um trombone reluzente com o maior cuidado, parecia ser extremamente importante. Não carregava nada além disso.

Um músico sem-teto que carregava todos os seus pertences consigo e tocava para conseguir comida. Essa era a impressão que ele passava.

Kino primeiro observou o homem, depois falou em voz alta

— Penso perdoar a sua vida caso se renda, senhor.

Silêncio.

Ele não respondeu com palavras, mas seu punho direito se fechou.

Kino segurou o cabo da Canon com a mão direita.

No mesmo instante em que o trompete soou, o homem levantou seu trombone vigorosamente e o apontou para Kino. Kino também puxou Canon em sincronia com o trombone e atirou.

A bala atingiu a campana do trombone e mudou sua orientação para a direita. Naquele momento, do orifício de onde deveria sair som saiu um líquido roxo gosmento. O líquido desenhou um arco pelo ar incendiando-se.

Um arco-íris perfeito de fogo.

O fogo voou pelo ar saindo da campana e terminou numa poça ardente do outro lado do arco.

— Sabia, um lança-chamas — comentou Kino enquanto puxava a Pessoa da Floresta das costas com a mão esquerda. Removeu a trava de segurança e apontou para a cabeça do homem. Então atirou desviando um pouco.

Um som seco e explosivo. O ferrolho da pistola movia-se violentamente, jogava os cartuchos vazios e colocava a próxima bala.

O homem terminava de apontar o trombone novamente para seu oponente, neste caso Kino, no momento em que a bala passou perto do rosto. Os olhos cercados de rugas se estreitaram e seu corpo inteiro encheu-se de força.

Em seguida, com um som vergonhoso, uma fonte roxa brotou do ombro direito do homem.

— Hein?

O líquido vermelho que escorria e manchava suas vestes o deixou atordoado. Kino conversou empunhando Canon na mão direita e Pessoa da Floresta na mão esquerda.

— Atirei na pequena mangueira que passa do seu ombro para suas costas. É um buraquinho de nada, mas pode explodir com pressão. Agora poderia me fazer o favor de se render?

Silêncio.

Ele olhou brevemente para o próprio corpo. Permaneceu assim por um tempo até dizer com a voz baixa.

— Me recuso.

— Você não tem mais chances de ganhar — disse Kino mirando Pessoa da Floresta. Ele encarava Kino sem hesitar.

— Me mate logo.

— O que disse?

— Disse pra me matar logo.

Assim que Kino tentou dizer alguma coisa, um grito veio das arquibancadas.

— Acabe com ele! Mate!

Então um a um todo o público começou a gritar.

Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate agora! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate o velho! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Mate! Atire! Mate! Mate!

Kino girou a cabeça bem devagar, absorvendo a visão do público gritando eufórico, sedento por sangue. Então, morosamente, Kino ergueu Canon para o ar e atirou, um único tiro. O silêncio se instaurou nas arquibancadas no mesmo instante.

Kino olhou para a área dos nobres onde o rei se sentava.

Vestia roupas tão extravagantes quanto as do dia anterior, sentado no mesmo lugar, e sorrindo de orelha a orelha ao olhar para Kino. Seus olhos se encontraram e, encarando firmemente, Kino retribuiu o sorriso com a maior elegância possível.

O homem disse

— O que está esperando? Atire logo em mim. Numa batalha de vida ou morte, os ganhadores vivem, os perdedores morrem. Sempre vivi minha vida assim. Matei centenas. E nessas centenas de batalhas eu ganhei. Por isso é aqui que eu morro e você, menininha, vai seguir viva.

Sorrindo amargamente, Kino explicou

— Menininha? Por favor, isso é constrangedor. Meu nome é Kino.

— Kino? Que lindo nome. Me lembrarei dele no inferno.

— Agradeço… — disse Kino aproximando-se do homem. Finalmente frente a frente, Kino encostou Canon na testa do homem. Armou o cão com o polegar.

Clic.

— Renda-se, por favor.

— Não.

— Não me deixa outra alternativa.

Kino puxou o gatilho.

Sob a força do polegar, o cão voltou lentamente para a posição original. O homem olhava desconfiado para Kino, que simplesmente sorriu de volta.

No segundo seguinte Kino girou Canon em sua mão, o cano longo agora apontado na direção de seu próprio corpo. Com o cabo virado para a direita, trocou de mão e deu um golpe sexo e único na têmpora do homem.

Um trabalho instantâneo.

O homem não pôde dizer mais nada, caiu inconsciente para a direita.

◆◆◆◆◆

— A esta altura, meu oponente é essa fofurinha aí? O que fizeram os seus oponentes até agora? — declarou a segunda oponente do segundo dia, já nas semifinais.

Uma mulher jovem. Usava o cabelo loiro preso num rabo de cavalo até a cintura, tinha o rosto bem definido e era alta. Muito linda.

Vestia calças e camisa de aspecto militar. E por cima da camisa um colete com vários bolsos pequenos. Os bolsos da calça também estavam divididos em vários compartimentos menores e compridos para guardar objetos.

A mão esquerda dela segurava uma persuader. Um rifle com coronha de madeira. Sua ação de ferrolho significava ter que carregar, atirar e descarregar a arma a cada tiro.

O cartucho aparecia um pouco saliente, fixado em frente ao gatilho. Além disso tinha o cano fino como uma vareta.

— Foram descuidados.

— Haha, claro que foram. Eu também uso essa mesma técnica.

Kino perguntou

— Você quer mesmo se tornar cidadã daqui?

— Eu? Quero, sim. Sabe por quê?

Kino negou com a cabeça. A mulher bufou do nada e explicou:

— Quando estava chegando perto daqui achei um menininho lindo, a coisa mais fofa, bem na beira da floresta! Preciso adotar e cuidar dele a todo custo!

Isso chocou Kino, e transpareceu claramente em seu rosto.

— Você é mulher também, deve entender o que sinto?

— Não…

— É mesmo?

Com muitas emoções misturadas, Kino perguntou:

— Licença… sei que provavelmente vai recusar, mas poderia me fazer o favor de se render?

— Eu que digo isso! — respondeu rapidamente.

— Sabia que seria assim… — murmurou Kino tocando Canon com a mão direita.

A mulher abriu o ferrolho de sua persuader. De um dos bolsos do peito ela produziu um clipe com cinco cartuchos compridos. Ela os colocou na arma e os empurrou de uma só vez, os retirou do clipe, abriu o ferrolho e carregou a persuader.

O trompete tocou.

Simultaneamente, sem enfrentar-se, fugiram velozes para atrás do entulho. Pularam para dentro dele e se esconderam. A loira usou um pedaço de ferro velho como defesa e atrás dele agachou-se, quase deitada, jogou a persuader comprida à frente e preparou-se ali.

Ela inspirou curtamente, cuspiu para o lado e parou. Depois dessa ação mirou na sucata onde Kino havia se escondido e reagiu.

Uma explosão, aguda e longa, ecoou e a mulher foi para trás com a força do recuo. Kino tentou pular da primeira sucata de metal onde se escondera para outra logo ao lado. A bala atravessou por completo o metal no lugar onde Kino esteve, abrindo um novo buraco nele.

Kino viu o metal voando para longe com força.

— Você é boa. — A mulher operava o ferrolho a uma velocidade furiosa. Pá! Um cartucho vazio saía da persuader, outro cartucho carregado entrava.

— Artilharia anti-tanque? — resmunou Kino. Com a mão esquerda Kino pegou Pessoa da Floresta e removeu o dispositivo de segurança. Discreta, porém agilmente, Kino deu a volta pela arena, rumo aos obstáculos do lado direito de sua oponente.

De trás de uma placa de metal, Kino viu o brilho dos cabelos loiros assim que tirou a cabeça lentamente para observar. Kino pulou para a próxima barreira, os restos de uma parede de pedra. No instante em que se escondeu atrás veio estouro, uma bala perfurara a pedra estrondosamente.

Pá! Pá! Pá!

Três disparos seguiram o primeiro, todos massacrando o esconderijo de Kino. A parede tremia com cada ataque.

Ainda sem se levantar, Kino percebeu uma pedra do tamanho de um punho rolando ao seu lado.

Sem sair de sua posição, a mulher pegou outro clipe de cartuchos e recarregou a persuader. Prestes a disparar novamente, sentiu dor na cabeça.

— Ai!

A mulher levantou a cabeça e viu pedras voando na sua direção. Tentou desviar com pressa, mas uma atingiu o seu ombro. As pedras vinham uma atrás da outra. Sem se levantar, ela pulou na diagonal para uma pilha de entulho e ali se protegeu.

Apertou a mão esquerda contra a cabeça, o sangue escorria por baixo do cabelo loiro.

— Droga!

Distraída pela raiva, espiou com cabeça e persuader para fora do entulho, viu Kino mirando diretamente nela e virou-se imediatamente.

Kino não atirou. Correu mantendo sua mira até a construção de restos de madeira que havia em frente à pilha de entulho onde a loira se escondia e refugiou-se entre os, pedaços de mesas e cadeiras de madeira, janelas, portas etc.

A testa da mulher suava e sangrava. Ela se limpou com as costas da mão.

Kino gritou sua pergunta.

— Está me ouvindo? Não quer mesmo se render?

— Que piada! Jamais subestime uma mulher!

— Essa persuader é uma desvantagem. Basta eu me aproximar…

Ela cumpriu suas palavras em silêncio.

Kino agachou-se costas contra uma porta de metal da pilha de entulhos, respirou fundo e apertou Pessoa da Floresta com a mão esquerda. Kino também suava e as gotas escorriam pelas laterais de seu rosto. Kino murmurou.

— É difícil ganhar sem matar, Mestra…

Nesse momento a loira desmontou a persuader retirando até o ferrolho. Do bolso das costas tirou uma peça metálica cilíndrica e a colocou onde antes estava o ferrolho. Ela encaixou-se perfeitamente como a peça que ali estivera antes, transformando-se em parte da persuader. Do bolso da perna tirou outro carregador. Ela sorria de orelha a orelha.

Kino espiou à frente discretamente pelo canto inferior esquerdo da pilha. Observou a montanha onde a mulher tinha se escondido. Atirou no pedaço de ferro no topo com Pessoa da Floresta. Bang! O tiro acertou e o pedaço caiu rolando para trás da montanha por cima dos demais ferros.

Ela pulou com a persuader por baixo do braço. Nessa posição ela atirou. Kino tentou sair do lugar de onde se escondia assim que ouviu o tiro, mas o som saiu bem diferente do anterior. Não o som seco e curto de um tiro normal, que logo desaparecia.

As balas saíram uma atrás da outra por aproximadamente três segundos. O chão ao lado de Kino foi pulverizado.

— O-o quê?

Kino rolou até o lado direito do entulho e tirou a cabeça lentamente para espiar.

Viu a mulher escondendo-se atrás de duas pilhas de entulho. A persuader dela tinha um carregador comprido que Kino não vira antes saindo para o lado direito da arma.

— Primeira vez que vejo isso — Kino disse lentamente enquanto escondia a cabeça de volta. A persuader que até pouco dava apenas um tiro e precisava ser recarregada agora disparava dezenas de maneira automática.

Se ela disparasse, a estratégia de se aproximar no intervalo de recarga entre um tiro e outro não daria mais certo.

— Assim fica difícil — reclamou. Uma chuva de balas atingiu o lado direito do lixo onde estava. Os ferros-velhos rodopiavam. Kino refugiou-se no meio de todo o entulho.

A mulher retirou o carregador, ainda carregado com muitos tiros, e colocou outro carregador cheio. Persuader apontando para baixo, ela aproximou-se cheia de pompa dos escombros onde Kino se escondia. Então ela disse:

— Você deu o seu melhor. Deixe a tia aqui terminar tudo agora, não vou atirar mais, pode sair. Vou deixar você se render.

— Vai mesmo? —

A resposta de Kino veio do outro lado dos entulhos. A mulher caminhou para a direita mirando a arma no lado direito dos entulhos enquanto olhava cuidadosamente para o lado oposto.

Logo em seguida a mulher atirou repentinamente e correu dando a volta na montanha de entulho. As balas, o cartucho vazio e o som de tiros espalharam-se.

As balas caíam incessantes do outro lado dos entulhos. Kino, porém, não estava lá. Em vez de Kino, havia uma porta meio torta. Algumas das balas atingiram a porta, mas todas ricochetearam.

Num pensamento breve ela concluiu que Kino fugira para outro lugar. Parou de atirar e virou-se. Nesse momento…

— Hã?

Ela viu uma mão aparecer do lado da porta. Essa mão segurava uma persuader. Do outro lado da porta aparecia metade de um rosto, um único olho a observava.

— Sua mentiroooooosa… — Kino parecia estar se divertindo. A mulher estava chocada.

Os disparos secos continuavam ecoando, três das pequenas balas da Pessoa da Floresta haviam atingido o ombro da mulher. A persuader caiu de suas mãos.

Sempre com a mira na mulher, Kino saiu de trás da porta.

A mulher sorriu por um momento, depois disse balançando a cabeças

— Não dá mais, eu me rendo.

— Agradeço muito — disse Kino e, então, ensanguentada da cabeça até os ombros, a mulher perguntou sorrindo.

— Olhando de perto você é bem bonitinha. Não quer sair com a tia fazer coisas legais mais tarde?

◆◆◆◆◆

O barulho de Kino voltando para o quarto acordou Hermes que, para variar, dormia.

Kino carregava uma sacola de papel que parecia pesada.

— Que bom que voltou, Kino. Fico feliz por não ter se machucado. Agora vem cá, o que é isso? Perdeu e mesmo assim levou prêmio de participação?

Kino colocou a sacola na cama com cuidado.

— Não é isso. É algo que vou precisar amanhã.

— Se você diz…

De dentro da sacola Kino tirou uma garrafa com um líquido verde. Era a pólvora líquida que utilizava em Canon. Além da garrafa tirou uma pequena caixa de papel. Dentro havia cartuchos de calibre .44. Não eram ogivais, pelo contrário, pareciam a caldeira de um vulcão com a ponta oca.

Kino tirou um mini-fogareiro da mala, um pouco de pólvora e acendeu o fogo. Em seguida lavou a caneca que costumava usar para tomar chá e colocou a pólvora líquida dentro.

— Kino, tá fazendo o quê?

Trabalhando com o maior cuidado, Kino respondeu sem olhar para Hermes.

— Estou fervendo a pólvora líquida.

— Não te ensinaram a não brincar com fogo? Isso é perigoso. O que vai fazer com isso mesmo?

Quando o conteúdo da caneca se concentrou, Kino a tirou do fogo e colocou ainda mais pólvora líquida. Feito isso, voltou a caneca para o fogo.

— Isto aumenta a concentração do explosivo, deixando as balas mais potentes e os disparos mais rápidos.

Balançando a caneca de leve, Kino ferveu a pólvora até a consistência de mel. Encheu a pia de água e esfriou o fundo da caneca. O líquido engrossou e a cor se fortaleceu, um verde forte como o das folhas das árvores.

Kino agora pegou uma das balas com a mão. As balas de ponta oca focavam a destruição em vez da penetração. Portanto, ao atingir o alvo, essa ponta fina se deforma ou estilhaça aumentando o impacto. Além do orifício no centro, também tinha as laterais mais finas.

Kino pegou um único cartucho e, pelo orifício, o encheu cuidadosamente com a pólvora concentrada. Colocou pólvora quase até a borda.

Pegando um único detonador, cobriu o centro do orifício.

Depois, pegou uma espécie de massinha. Era a mesma massinha que usava para consertar Hermes. Cobria arranhões, buracos e remendava peças. Endurecia muito quando seca e secava bastante rápido.

Misturou componente A com o componente B nas proporções corretas. Então, lentamente, a aplicou por cima do detonador na ponta do cartucho.

A bala que antes tinha um orifício oco na ponta agora era perfeitamente ogival. Logo em seguida Kino cortou a ponta com uma faca, profundamente, em formato de cruz. A massinha endureceu logo depois.

— Terminei!

Kino segurou a bala artesanal e a fitou com o mesmo encanto de uma criança.

Hermes dormia profundamente.

◆◆◆◆◆

Na manhã do terceiro dia naquele país, Kino acordou ao amanhecer.

Desmontou e fez a manutenção da Pessoa da Floresta e a carregou com balas. Seguiu sua rotina com o treino de sempre.

Depois de um desjejum caprichado, Kino foi perguntar ao soldado que fazia a guarda dos quartos informações sobre aquele lugar. Coisas como a história, as leis e os costumes.

— Tudo aqui.

Kino examinou minuciosamente o livro que o soldado lhe entregara.

◆◆◆◆◆

Tudo aconteceu sete anos atrás.

O rei anterior, adorado apesar das políticas rigorosas, fora assassinado pelo próprio filho, isto é, o rei atual. Não bastasse isso, havia agravantes na história.

O rei atual já levava um tempo odiando o pai pela rigidez extrema, até que, finalmente, todo o ressentimento que guardava explodiu. Ele deu um jeito em todos que se opuseram às suas ações. A maioria dos que carregavam o sangue real foram massacrados. Os irmãos, irmãs, tios, tias do rei atual, todos mortos.

Ele não matou a esposa, mas esta, de tanta tristeza, suicidou. Seu filho foi exilado e encontrava-se desaparecido Havia diversas teorias, entre elas de que o menino fora assassinado como os demais, ou de que seguia vivo, porém preso na masmorra do castelo.

Então, tomando a coroa para si, neste país abençoado de recursos, começou uma vida de prazeres próprios e leis egoístas. A tal ponto, que recomendou aos cidadãos modestos e responsáveis adotarem o mesmo estilo de vida.

Houve resistência de parte da população no início. No entanto, foram se acostumando cada vez mais a essa vida de prazeres até finalmente passarem a adorar o rei atual. O caos se instaurou.

De volta ao presente.

◆◆◆◆◆

Quando Hermes acordou naturalmente, por volta de meio-dia, já haviam chamado Kino para o último duelo.

Kino instalou um tambor vazio na Canon e, em uma das recâmaras, colocou a pólvora líquida concentrada. Forçou o dobro da medida que costumava usar para dentro dela. Assim, sem nem colocar o feltro, colocou a bala imediatamente. A bala artesanal que produzira na noite anterior.

Kino estava usando um cilindro de quatro recâmaras e empurrou a bala mais fundo.

Nas demais recâmaras, Kino colocou retalhos de feltro e os empurrou até o fundo com a vareta.

O detonador ficou na única recâmara preenchida.

— Kino, tem noção do que está fazendo? Desse jeito só vai ter um único tiro.

Kino sorriu. — E vai ser o suficiente — respondeu no meio de seus preparativos. Girou o cilindro com uma bala só e guardou Canon em seu coldre.

Feito isso, Kino carregou toda a bagagem em Hermes e a amarrou com firmeza. Por último, vestiu seu casaco.

— Vamos? Quero você perto de mim assistindo tudo, Hermes.

Soltou o apoio lateral e saiu do quarto empurrando Hermes.

— Por quê?

— Assim que eu terminar tudo, vamos dar o pé deste lugar sem chuveiro — Kino brincou.

◆◆◆◆◆

Kino caminhou até o centro do Coliseu em meio a uma torcida eufórica. Servindo como cabide para o casaco de Kino, Hermes ficou numa das entradas da arena observando tudo. Acima dele estavam as arquibancadas. Oposto a ele estava o camarote do rei, visível, completa e naturalmente embriagado.

Assim que chegou ao centro, o oponente da batalha final apareceu do outro lado do campo. Enquanto Kino caminhava calmamente até o centro, Hermes observou o homem com a mesma calma de Kino.

Um jovem rapaz de vinte e poucos anos, alto, magro e bem proporcionado. Seu cabelo era escuro como o de Kino. Vestia jeans azuis e um suéter verde reforçado nos ombros e cotovelos.

Os olhos de Kino se encontraram com os dele. A expressão em seu rosto era completamente diferente da que vira nos oponentes até então. Mesmo prestes a entrar em batalha, transparecia calma. Seu sorriso amável era convidativo. Parecia um mártir entregando-se plenamente ao sacrifício.

Sua arma não passava de uma espada presa à cintura, a bainha presa diretamente ao cinto.

◆◆◆◆◆

— Ei, tio — Hermes gritou para chamar a atenção do guarda de meia-idade parado ao seu lado.

— Que foi?

— Aquele cara bonzinho carregando uma espada é o outro finalista?

— Isso mesmo. Apesar das aparências, chegou até aqui ileso. Só de ver já dá pra saber que é fortemente. A sua parceira não é ruim, mas parece que vai se encrencar aqui.

Hermes não parecia nem um pouco abalado.

— Hum…

— Só “hum”? Não está preocupado com sua parceira? Hein? — perguntou o soldado surpreso com a indiferença.

— Preocupado? E eu ficar preocupado vai ajudar Kino em alguma coisa?

— Mais frio que metal…

— Mas vai ficar tudo bem. Eu sei que Kino está tramando algo pior que a vitória, isso sim me faz preocupar.

— Hein?

O soldado não conseguiu entender as palavras enigmáticas de Hermes, não ainda.

◆◆◆◆◆

— Eu me chamo Shizu.

O espadachim se apresentou para Kino. Seu tom era educado e a dicção clara.

— Eu sou Kino — respondeu.

— Kino, certo? Eu gostaria de pedir um favor.

— O que seria?

Shizu disse então as mesmas palavras que Kino já tinha repetido quatro vezes até então.

— Gostaria que se rendesse, por favor. Eu vou aceitar.

Com um pouco de surpresa, Kino perguntou:

— Quer se tornar um cidadão daqui, senhor Shizu?

— Sim… É o que quero.

— De um país podre feito este?

Esta foi a vez de Shizu de se surpreender, encarou Kino em silêncio por alguns instantes. Seu olhar era cortante, mas não tinha maldade.

— Agora isso é uma surpresa. Participou desta piada de competição mesmo sabendo que esse era o prêmio? Ainda por cima chegou à final… Não quer mesmo a cidadania daqui?

— Não. Mas por que ela é importante para você?

Shizu desviou o olhar de Kino. Pareceu perder-se em pensamentos por um breve segundo e voltou a olhar para Kino. Ele disse pausadamente.

— Existe algo que, como cidadão, preciso fazer aqui… Para isso, gostaria que se rendesse.

— Não entendi seu motivo, mas me recuso — disse Kino sem enrolar.

— Por que isso? Para que lutar aqui se não quer a cidadania? — Shizu perguntou com uma expressão que Kino não conseguia decifrar.

— É bem simples: Quero lutar aqui. Só isso.

Kino bateu Canon de leve em sua coxa direita ao responder Shizu.

Shizu balançou a cabeça desapontado com a falha em convencer Kino e, bem rápido, olhou de relance para a entrada de onde tinha vindo.

Com o polegar esquerdo empurrou a guarda da espada para fora da bainha. Empunhando-a com a mão direita, Shizu desembainhou a espada.

A lâmina prateada despontou. Shizu então a segurou com ambas as mãos.

O trompete tocou anunciando o começo da luta.

Kino preparou Pessoa da Floresta com calma. Destravou o dispositivo de segurança, apontou a  arma para Shizu, mas não atirou.

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Shizu tampouco moveu-se do lugar onde estava parado, tinha a espada em meia guarda, apenas levemente inclinada. O ar gentil e calmo de momentos atrás não existia mais ao seu redor. A espada e ele eram uma arma só.

Shizu se aproximou um passo de Kino. E outro passo.

Kino disparou Pessoa da Floresta uma vez. A bala passou ao lado da cabeça de Shizu e acertou longe dele. Sem temor algum, sem nem sequer desviar, Shizu deu mais um passo à frente.

Desta vez, Kino atirou rente à cabeça de Shizu. Shizu não se abalou, depois de a bala ter passado a milímetros seu ouvido, ele avançou outro passo.

Kino respirou devagar e mais uma vez mirou, desta vez no ombro direito de Shizu. Nesse momento, a espada que ele deixara em guarda moveu-se de repente, sobrepondo-se ao alvo de Kino.

— Ah!

Mesmo com o choque, Kino apertou o gatilho. A lâmina foi de encontro ao tiro, que ricocheteou e voou obliquamente para trás.

— Que incrível!

Kino não escondeu a admiração, como se as habilidades de seu oponente não fossem problema seu, e atirou várias vezes para os pés e mãos de Shizu.

De mãos ligeiras, Shizu moveu a lâmina como se fosse uma extensão de seu corpo e ricocheteou todos os tiros que vieram em sua direção.

Então, ele deu outro passo à frente.

◆◆◆◆◆

— Viu isso, Motorrad? Esse cara é incrível mesmo — comentou o soldado como se torcesse pelo homem.

— Humm. Incrível mesmo desviar tiros com uma espada. Como ele sabe onde Kino vai atirar?

— Talvez ele não foque na mira dos oponentes, mas nos olhos e no movimento das mãos. Na segunda rodada ele fez o mesmo e derrotou outro usuário de persuaders.

— Cara fodinha. Não sei se o mundo é bonito ou não, mas sei que é grande e tem de tudo, viu? —

Se tivesse boca, Hermes estaria boquiaberto. O guarda deu uma de sabichão.

— Já disse um sábio “Se estiver possuído de uma inabalável determinação, conseguirá superar tudo”.

— Poetizou, tio.

O guarda riu vermelho, como se o elogio de Hermes o tivesse deixado sem graça. Então soltou:

— Ainda não entendo por que ele não matou.

— Como assim?

— Ele não matou ninguém, mas também não se segurou na hora de machucar. Aliás, sua companheira também é assim. Atirou, mas não matou. Os dois chegaram até a final sem matar, o que diriam os competidores antigos? O que eles estão pensando?

Pelo tom do soldado, não dava para entender se estava admirado ou abismado.

— E não é? O que será que tem nessa cabecinha… — reclamava Hermes enquanto mais tiros ecoavam pelo Coliseu.

◆◆◆◆◆

Dos oito disparos de Kino, nenhum atingiu Shizu. Kino jogou o carregador que ainda continha dois tiros e reintroduziu outro cheio com dez tiros em Pessoa da Floresta.

Shizu estava de frente para Kino.

— Não pode mesmo se render? — pediu Shizu com tranquilidade, sua espada em meia guarda.

— Vou deixar a oferta passar — disse Kino mirando na espada de Shizu. Não intencionalmente. Era só que, para onde quer que mirasse, Shizu seguia sua mira com a espada sem qualquer esforço.

Outro tiro. Outro ricochete.

Em seguida, Shizu correu feito um raio, cortando a distância entre ambos.

— Há!

Empunhando a espada na mão direita, ele cortou uma diagonal ascendente na direção oposta, da esquerda para a direita. O fio da lâmina acertou o cano de Pessoa da Floresta e a jogou para longe da mão esquerda de Kino.

Sem desperdiçar qualquer segundo, a mão de Shizu foi logo segurar o punho da espada acima da cabeça. Ele virou a lâmina silenciosamente e, segurando a espada com ambas as mãos desta vez, cortou diagonalmente mirando o ombro esquerdo de Kino.

Mas assim que perdeu Pessoa da Floresta da mão, Kino jogou o pé esquerdo levemente para trás, cruzou os dois braços acima da cabeça e aproximou-se do ataque.

O tinido de metais chocando ecoou quando as mãos cruzadas de Kino encontraram a espada de Shizu onde punho e lâmina se encontravam e a detiveram ali produzindo faíscas momentâneas.

— Como? — Shizu teve pouco tempo para reagir. Kino já estava em seu flanco esquerdo, girando o braço esquerdo para desviar sua espada e aproveitando o impulso para atacar a têmpora de Shizu com a palma direita.

O impacto do gancho de Kino jogou Shizu para a direita, que segurou a espada na mão direita e mirou na lateral de Kino. O golpe não teve muita força, e Kino apenas precisou girar o braço esquerdo um pouco mais para segurar o golpe. Outro claque metálico.

Shizu recuou dois passos e corrigiu a postura imediatamente. A espada voltou à meia guarda.

Kino manteve o pé esquerdo para trás, o braço esquerdo voltou para a posição original.

Então, do nada, relaxou-se. Balançou os braços como se tivessem ficado dormentes.

Havia partes metálicas aparecendo por entre os rasgões das mangas da jaqueta. Kino tinha escondido uma cartada secreta na manga.

— Você é forte. Sabe muito bem como surpreender e intimidar, estou impressionado. — Shizu virou a lâmina da espada, agora o gume apontava para Kino. — Mas eu realmente gostaria que se rendesse logo — tentou mais uma vez sem hesitar.

Com a maior naturalidade, Kino levantou os braços e respondeu:

— Eu me recuso..

— Quando me tornar cidadão daqui, vou fazer uma lei para te dar a cidadania também.

— Passo. Não tenho intenção nenhuma de ficar aqui.

— Verdade, tinha esquecido. Mas se continuarmos assim você vai morrer.

Mesmo encarando Kino com força, o tom de Shizu ainda era calmo e agradável.

Kino, por outro lado, não estava levando tudo muito a sério.

— Tem outras opções… eu, por exemplo, cheguei até aqui sem matar ninguém neste país.

A expressão de Shizu continuou fechada.

— Hum… E o que quer dizer com isso?

— E só isso mesmo — concluiu risonhamente, a diversão muito aparente em seu rosto.

— Mas acho que no final é preciso matar uma pessoa só.

Shizu não disse nada, mas seu olhar amoleceu.

Kino também olhava para Shizu, mas em seu olhar havia a alegria de quem esperava por alguém na multidão e este acabara de chegar.

Shizu moveu-de repente. Ele fechou o espaço entre ambos, espada para o alto. Kino sorriu um pouco e estendeu a mão direita com Canon. Então puxou o martelo.

No instante seguinte ambos pararam.

Kino empurrou Canon com força para cima de Shizu quando este ainda estava para desferir seu golpe de espada.

O martelo da persuader começou sua subida. Shizu sabia bem que agora bastava o menor puxão no gatilho para que se abrisse um buraco em seu queixo. Ele suspirou.

— Que velocidade…

—É mais fácil do que prever para onde as persuaders estão mirando, com calma você consegue ver quando o ataque virá. Depois disso é só se adiantar ao seu oponente.

Shizu não tinha o que dizer.

— Você está focado demais na vitória. Pode até soar falta de consideração, mas os torneios estão aí para divertir, não para matar. —

Sem parar de olhar a expressão de Shizu, Kino falava tentando persuadi-lo a desistir. Todo aquele vigor de antes foi logo embora da cara de Shizu. Agora tinha o mesmo ar gentil que Kino vira nele na primeira vez.

Shizu preparou seu ataque.

— Perdi… A derrota é minha, e agora? Vai aceitar minha rendição? Ou vou morrer aqui e agora?

— Não precisa ser nenhum desses.

Shizu percebeu a expressão de Kino mudar imediatamente após a resposta. Seus lábios estavam esticados num grande sorriso, mas seus olhos indicavam o contrário.

Com a mão esquerda Kino desceu a alavanca de segurança embaixo do cano de Canon. Como quando carregou as balas, a persuader se abriu. Na recâmara inferior do tambor havia um pedaço de feltro. Puxava a alavanca de segurança como se quisesse colocá-la mais para dentro.

Ao mesmo tempo, com a mão direita, fazia força no sentido inverso. Assim, Kino deixou Canon bem firme e estável entre suas duas mãos.

— O que… está fazendo?

A pergunta de Shizu foi engolida pelos gritos das arquibancadas. — Acaba com ele! —Mata logo! Os gritos foram se unindo, um a um, até formar um grande coro:

— Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata! Mata!

Sem desviar a mira de Shizu nem mudar sua expressão, Kino moveu-se levemente para a esquerda. Naturalmente, Shizu também moveu-se na direção oposta.

— O que está fazendo…? Se for me matar…

Kino agora mirava um pouco além do pescoço de Shizu, concentrando toda a sua força no objetivo. Seu olhar se encontrou de relance com o de Shizu e com a mesma curiosidade de uma criança perguntou:

— Quem está atrás de você?

— O quê? Hã? Ah! Você… não pode ser…

Kino gritou.

— Pra baixo!

— Ah!

Shizu dobrou os joelhos num piscar e Kino puxou o gatilho de Canon.

O martelo atingiu o detonador. A pólvora líquida elevou o poder explosivo ao máximo e o gás da explosão empurrou a bala. A bala atravessou o cano e passou por entre os braços levantados de Shizu. O gás liberado pela explosão criou uma onda de choque que acertou em cheio a testa de Shizu. O impacto o derrubou para trás numa cambalhota.

Kino também, sentindo a dor do recuo nos braços, caiu para trás.

Seguindo a mira exata de Kino, a bala voou direto para a área da arquibancada reservada aos nobres. E reforçada pela massinha que Kino colocara antes, atravessou com facilidade o vidro nem tão grosso assim. O vidro estilhaçou-se e criou uma chuva de cacos.

O impacto abriu a cruz na ponta da bala separando-a em quatro partes.

O que restou da bala avançou sem obstáculos e atingiu o maxilar superior do homem de coroa sentado no meio da cabine.

Penetrou a pele, despedaçou os ossos, destruiu a carne e se alojou no centro da cabeça.

A rotação abriu a carcaça do projétil. O impacto finalmente atingiu o detonador. A pequena faísca resultante incendiou a pólvora líquida dentro.

A cabeça do rei explodiu.

Seu rosto voou para a frente em pequenos pedaços de carne. Pedaços misturados de ouvido e cérebro saíram de ambos os lados da cabeça. O couro cabeludo na parte de trás foi arrancado e voou para trás junto com a coroa.

O vestido da mulher sentada ao lado dele ganhou uma nova estampa de carne, cabelo e outros pedaços com fragrância única.

Do queixo para cima havia apenas ar. Os dentes inferiores e a língua do rei estavam expostos à plateia.

◆◆◆◆◆

Jogado para trás com o impacto do tiro e de cabeça para baixo, Shizu viu a cabeça do rei inchar por trás da chuva de cacos de vidro. Em seguida viu uma esfera vermelha envolver o assento real num piscar de olhos. Finalmente, caiu no chão batendo as costas e a parte de trás da cabeça.

Então, quando a nuvem vermelha terminou sua chuva, antes de todos os demais, antes mesmo de Kino, que desferira o tiro, Shizu soube da morte do rei daquele reino.

— Essa não… — murmurou Shizu. Sua cabeça latejava dolorosamente e ele se sentia desnorteado. Desse modo, simplesmente fingiu desmaiar.

◆◆◆◆◆

A multidão, silenciada com o tiro de Kino, demorou para perceber o que realmente acontecera ali. Alguns ouviram os gritos vindos da área nobre, outros viram a pessoa que se jogou janela afora vomitando.

A notícia da morte do rei se espalhou gradualmente como uma brincadeira de telefone sem fio.

Kino assistia o pandemônio enquanto pegava Pessoa da Floresta e guardava Canon, temporariamente inutilizada pelo último tiro. Depois de conferir que a arma não sofrera danos, colocou-a no coldre.

A multidão estava perdida, sem saber o que fazer, um caos total.

Kino olhou em volta para toda a multidão, levantou ambas as mãos e pronunciou-se gritando:

— Senhoras e senhores! O rei foi vítima de uma bala perdida! Meus mais sinceros pêsames! Mas eu ganhei! Como um de vocês eu proclamo minha nova lei, ouçam! Não existe reino sem rei! Eu vou escolher o próximo rei! Todos aqueles presentes neste país apresentem-se agora para lutar, o último sobrevivente será o novo rei! Quem não lutar perderá a cidadania e deverá deixar o reino imediatamente! Esta é minha nova lei!

O Coliseu calou-se, silêncio total enquanto processavam a nova lei.

Isso, porém, não durou muito.

◆◆◆◆◆

Kino caminhou até a entrada onde estava Hermes. De passagem, chutou o ombro de Shizu no chão.

— Ai!

— Sinto muito, mas vejo que está vivo. Estou indo embora, se quiser se tornar cidadão agora, fique à vontade.

O coliseu era um circo pegando fogo, gritaria e alvoroço. O som de tiros ecoava a cada tanto.

Kino finalmente chegou até Hermes.

— Olha só quem voltou. Achei que ia ser o seu fim.

O soldado de meia-idade ao lado de Hermes falou com Kino:

— Vo-você é bem forte. Nã-Não quer se juntar a mim? Fique com a coroa! Eu vou ser seu ministro!

Kino simplesmente vestiu o casaco e respondeu sem interesse

— Vou deixar a oferta passar, já estamos indo embora.

— Escuta só, tio, se não quiser morrer aqui eu recomendo dar no pé.

Kino deu partida, o ronco do motor se fez sentir no concreto.

O soldado parecia querer dizer alguma coisa.

— Falou, tio! — Kino mal esperou Hermes terminar de se despedir para partir.

Instantes depois, já fugiam a toda velocidade.

◆◆◆◆◆

Passo a passo, lentamente, Shizu subiu pelas arquibancadas. Sua expressão, de certa forma, vazia.

Ao seu redor seguia a briga, execuções ocorriam de maneira arbitrária. Indiferente, Shizu andava absorto em seus próprios pensamentos.

— Você é forte. Vamos nos juntar e botar pra quebrar. O que acha? — convidou-lhe um homem, mas, para Shizu, ele podia nem estar lá. — Tá se achando, é? Acabem com ele agora! — disse injuriado. Homens armados com machados e barras de ferro apareceram de ambos os lados responderam o chamado.

Shizu virou-se para a direita e desembainhou a espada silenciosamente. Cortou o homem atrás dele por cima do próprio ombro e, ao voltar com a espada, partiu o rosto do homem à sua frente ao meio.

Deixou quem fugisse de lado. Subindo uma a uma as plataformas das arquibancadas, espada sempre na mão direita, Shizu por fim pisou nos estilhaços de vidro.

Ao entrar na área nobre pôde ouvir com clareza o plic ploc dos pedaços de carne que esmagava com os pés.

Shizu olhou para o rei, ainda sentado em seu trono, agora uma cabeça mais baixo do que costumava ser.

Sem a parte superior do crânio, a língua exposta do rei dependurava-se como uma criança brincando de dar a língua.

Um sorriso quase imperceptível.

Um suspiro profundo.

Um murmúrio quase inaudível.

— Quanto tempo…

◆◆◆◆◆

Kino e Hermes corriam pela estrada de uma floresta.

Sem qualquer aviso prévio, deram de cara com um lago e Kino freou Hermes.

Descendo de Hermes com cuidado, Kino andou até a beira do lago e sentou-se na grama.

— Que lindo — disse Hermes olhando para a superfície calma do lago. O céu azul sem nuvens e a floresta verde exuberante refletiam-se nele. Kino jogou uma pedra. A pedra afundou com um ploc e criou ondulações que espalharam pela superfície. Estas sumiram tão logo apareceram.

— Kino…

— O que foi, Hermes?

Hermes não respondeu de imediato. Ambos passaram um tempo ouvindo o canto dos passarinhos.

Depois disso Hermes começou seu discurso devagar.

— Um tempo atrás, tem até bastante tempo isso… Lembra que a gente encontrou um casal bem jovem numa carruagem?

— Lembro…

Kino jogou outra pedra no lago.

 — Eu lembro que eles falaram de um país maravilhoso numa floresta a oeste de onde estávamos e que estavam indo para lá.

— Disseram isso mesmo.

— Então, tempos depois, a gente reencontrou a esposa, né? Só que ela estava sozinha.

— Sim…

— E se não me falha a memória, ela te disse sorrindo: “Foi uma visita maravilhosa, Kino, você tem que conhecer aquele país.”

— Aham… Foi o que ela disse.

Kino pegou uma pedra avermelhada, do tamanho da cabeça de um bebê, e a arremessou no lago com todas as forças.

Com um plof enorme, uma onda maior que todas as anteriores viajou pela superfície do lago distorcendo aquele pequeno mundo refletido.

Kino contemplou tudo isso.

Um momento fugaz, que terminou tão logo começou, e a superfície voltou a ser o mesmo espelho calmo de antes.

— Pois bem.

Kino levantou-se batendo nas nádegas para tirar a poeira do chão.

Com uma última olhadela no lago,

viu um rosto jovem, magro e de cabelos despenteados.

◆◆◆◆◆

Quando Kino estava prestes a subir em Hermes, ouviram ao longe o barulho de um motor. Ele se aproximava.

— Buggy de areia Chenowth, um só.

Hermes identificou o veículo apenas pelo som do motor.

De repente, um veículo baixinho, próprio para andar sobre as areias do deserto, surgiu do meio da floresta e parou frente a Kino e Hermes. A bordo estava Shizu. No banco do carona sentava-se um cão peludo, enorme, branco como a neve. Seus olhos amendoados e o focinho com expressão sorridente faziam dele um cão extremamente adorável.

— Olá, Kino — Shizu cumprimentou sorrindo desde o banco do motorista.

— Olá.

Shizu desligou o motor, tirou os óculos de proteção e desceu do buggy. Sua espada não saiu do banco. Parou-se em frente a Kino e conversou.

— Queria te encontrar de novo, Kino.

— É mesmo…? Pena não ter podido se tornar um cidadão.

— Não, está tudo bem. Para falar a verdade, eu queria te agradecer.

— Agradecer? — Kino perguntou com desconfiança.

— Isso mesmo — confirmou curvando-se profundamente. — Você fez o exatamente o que eu queria fazer como cidadão… Meu mais sincero obrigado por ter matado o meu pai. —Olhando firmemente para Kino — Obrigado —, agradeceu.

Kino não disse nada. Não tinha o que dizer, até que Hermes não aguentou mais.

— Quer dizer que você era o príncipe de lá?! — perguntou gritando.

— Era, sim. Agora, porém… Para ser sincero, meu plano sempre foi ganhar o campeonato e, durante a cerimônia de premiação, matar aquele homem… Isso já tem sete anos. Graças a você, Kino, pude me libertar desse fardo.

Shizu sorria timidamente como se estivesse envergonhado.

Kino, com a compostura de sempre, disse — Vingança… é algo bem estúpido, né?

Sem perder o sorriso, Shizu fez que sim com a cabeça. — É, realmente estúpido.

Ambos apreciaram o silêncio daquele momento.

◆◆◆◆◆

— E agora, o que pretende fazer? — Kino perguntou para Shizu, já sentando-se no banco do motorista do buggy.

— Agora…? Acho que vou só viajar, como você, até achar algo que queira fazer. Vou começar indo para o norte. Acabamos nos acostumando com climas mais frios, né, Riku? — disse fazendo carinho no cão ao seu lado. Riku era, pelo visto, o nome do cão.

— Se for essa a sua vontade, mestre Shizu — respondeu Riku.

Foi o que bastou para Hermes perder a compostura. — Mentira! — gritou indignado. — O cachorro fala! Como assim?!

Visivelmente ofendido, Riku foi bastante franco na sua resposta.

— Como é? Tem problema cachorro falar agora? Tá se achando demais pra uma moto que fala.

— Que… Que audácia!

— Hum. Não passa de um veículo que sequer consegue se dirigir sozinho. Se não gostou vem me atropelar sozinho, dá conta?

O nível de abuso verbal que saía de Riku destoava imensamente com sua aparência adorável.

— E-e você?! Depende de uma matilha ou de humanos pra sobreviver! Pra piorar ainda nasce com essa vontade de querer mandar e ser o alfa! Vai fazer o quê comigo? Me morder? —

Hermes atacou descaradamente.

— Repete isso se tiver coragem!

— Vem então!

— Pare, Riku.— Chega, Hermes.

Shizu e Kino deram um basta à briga ao mesmo tempo.. Riku estava prestes a pular para cima de Hermes, mas sentiu-se na mesma hora. Em seguida, olhou para Kino com respeito.

— Meu nome é Riku, eu sou o fiel servente do mestre Shizu. Tive a honra de ver o duelo final entre ambos. Graças à sua generosidade, Shizu pôde perder a luta sem perder a vida. Muitíssimo obrigado.

Com um misto de vergonha e alegria, Kino disse — Por nada. — Em seguida olhou para Shizu. — Ele é fofo demais. Posso fazer carinho? — pediu.  O dono abriu a palma da mão gesticulando que podia, sim, fazer aquilo.

Kino agachou-se, abraçou Riku e fez carinho com ambas as mãos por todas as partes peludas.  Riku também, lambeu a boca e as bochechas de Kino.

Vendo Kino tão feliz com Riku…

— Hunf. Cachorro safado… — Hermes reclamava bem baixinho para ninguém em particular.

Kino passou um bom tempo fazendo carinho em Riku até que, de repente, percebeu um objeto jogado sem cerimônia em cima do banco. — Licença… — Estendeu a mão e pegou o objeto do veículo. Era a coroa que, até horas atrás, decorava a cabeça do rei.

— Ah, isso… Peguei por ser uma lembrança do meu avô — Shizu admitiu. Depois de um último carinho no Riku, Kino se levantou e voltou a ficar de frente para Shizu.

— Acho que não sou a melhor pessoa para falar disto, mas… tem certeza de que não quer o trono?

— Absoluta.

— Por quê?

— Alguém que planejou assassinar o próprio pai não tem a menor condição de ser rei.

— Será?

Segurando a coroa com ambas as mãos, gentil e silenciosamente, Kino coroou Shizu. O jovem cabisbaixo levantou o rosto e perguntou melancólico.

— Não combina nem um pouco, né?

Kino o olhou por alguns instantes e respondeu indiferente.

— Talvez.

◆◆◆◆◆

Kino montou Hermes e ligou o motor. Antes de vestir o casaco, Kino parou e colocou os óculos de proteção.

— Kino, por que não vamos juntos até a cidade ao norte? Eu sei o caminho —

perguntou Shizu em voz alta do banco do motorista do buggy. Ele seguia com a coroa na cabeça.

— Sinto que devo recusar, tem outro lugar aonde preciso ir. Além disso…

— Além disso?

— Ma ensinaram a não aceitar convites de homens desconhecidos.

Kino ficou sem entender o comentário. Shizu sussurrou algo para Shizu. Ficando bastante surpreso, Shizu virou o rosto para Riku e trocou com ele algumas palavras. Em seguida virou-se novamente para Kino e acenou sorrindo.

— Ah, certo… Entendi, certo… Então é uma despedida. Espero que nos encontremos de novo por aí, Kino. Você também, Hermes, cuide-se.

— Claro. Cuide-se. Você também, Riku.

— Muito obrigado.

Logo depois da resposta de Riku, Hermes precisou se meter.

— Até, cachorro safado.

— Até mais, ferro-velho.

— Hunf.

Shizu e Riku seguiram ali, observando-os até o motorrad desaparecer no horizonte.

◆◆◆◆◆

Shizu desceu do buggy e ficou ao lado dolago. Por acaso ele olhou para baixo, e se viu observado por um jovem coroado tal qual aquele homem..

Antes de que pudesse devanear sobre as semelhanças entre ambos os rostos, Riku começou a beber a água do lago a seus pés. As pequenas ondas flutuaram com o rosto de Shizu.

Ele virou o rosto, preferindo encarar a floresta exuberante que crescia do outro lado do buggy. O reino onde ele nascera encoberto pelo verde. Em seguida desceu o olhar para a espada ao lado do banco do motorista.

Ele não percebeu quando Riku se sentou ao seu lado, este último olhava para ele com o maior respeito possível.

— O que acha que devo fazer, Riku? — perguntou suspirando ao seu servente.

— Nem se pudesse plantar bananeira seria capaz de lhe dizer o que fazer, mestre Shizu — Riku declarou claramente.

Em paz, ele murmurou — Tudo bem… — bem baixinho. Então, uma última vez, ele olhou para a floresta pensando no país que se encontrava do outro lado dela.Kino_v01c04p165