Kino: Três homens ao longo dos trilhos ―On the Rails―

O lugar era uma floresta de árvores enormes.

Tão grossas que seus troncos poderiam ser usados para fazer camas de casal. Ou ainda colunas de templos que, conforme as leis da natureza, enfileiravam-se aqui e ali completamente fora de ordem.

Até mesmo para cima não se via nada além da cúpula verde. Os ramos e as folhas, que começavam a uns doze metros do chão, cobriam o céu completamente sem deixar brechas. Sem que os mais tênues raios de luz alcançassem o chão, não havia como uma folha de grama sequer crescer naquele chão. Era um solo úmido e escuro que se estendia para todos os lados. Ali, onde o verde e o negro se entrepunham, a própria natureza produzia um ambiente contrário às suas leis.

— Não gosto muito de passar por dentro de florestas. Sabe o porquê, Hermes? — perguntou uma pessoa de cabelo curto, de quinze ou dezesseis anos, parada perto das árvores enormes.

Era magra, vestia um casaco escuro e tinha um cinto preso à cintura. O cinto era grosso, mas sua cintura era fina. Havia um coldre preso na parte de trás de sua coxa direita. Dentro dele havia uma persuader de mão (nota: persuader é uma arma pequena; neste caso, um revólver).

Ao seu lado estava um motorrad (nota: veículo de duas rodas, não voa) apoiado no próprio suporte lateral. Não havia banco traseiro, mas sim um bagageiro. Ali estava amarrada uma mala um pouco suja. Seu motor acelerava ao lado da roda traseira.

— É pelas lagartas, Kino? — arriscou o motorrad chamado Hermes.

— Não é isso… Bem, tem um pouco disso também. Mas a verdade é que, dentro da floresta, é muito fácil se perder do caminho certo. Você quer seguir para oeste e, quando menos espera, já está seguindo em direção ao leste. Também é triste não ver o sol.

A pessoa chamada Kino falava vestindo seu chapéu de pequenas abas laterais que caíam penduradas cobrindo suas orelhas.

— O caminho certo?

— Isso mesmo, Hermes. Se a gente for para o norte, vamos sair desta floresta. Se fizermos isso, vamos parar numa estrada, com certeza.

— Boto muita fé.

Kino tirou uma bússola do bolso esquerdo do peito, afastou-se um pouco de Hermes e checou o Norte.

— Vamos?

Kino olhou para trás uma vez, certificando-se de que não deixavam nada para trás. Conferiu o nó das bagagens e do casaco para ter certeza de que não se soltariam. Vestiu as luvas, montou Hermes e usou o peso do corpo para soltar o suporte. Nesse mesmo instante soltou a embreagem e andou um pouquinho para testar os freios. Por último, colocou os óculos de proteção e finalmente deu partida em Hermes.

Seguiram assim até que, tempo depois, pararam de correr. Kino desceu, afastou-se um pouco de Hermes e checou o caminho com a bússola.

Então pulou de volta no Hermes e começaram a correr. Pouco depois pararam novamente, Kino afastou-se um pouco e checou o caminho mais uma vez. Kino repetiu essas ações uma e outra vez.

— Ah, que chato! — reclamou Kino sem relaxar, mas seguiu repetindo a mesmíssima sequência de ações.

— Valeu pelo esforço.

Pela centésima oitava vez, Kino terminou de checar a direção e voltaram a correr quando, entre o verde e o negro à frente da direção que seguiam, surgiu uma linha branca. Pouco depois ela se alongou, cresceu para cima e para baixo e iluminou tudo com uma luz brilhante.

Kino diminuiu a velocidade deixando seus olhos se acostumarem gradualmente à claridade. Finalmente, passando ao lado do último tronco, o motorrad saiu da floresta de árvores enormes.

♦♦♦♦♦

Não havia estrada no extremo norte da floresta.

Na frente de Kino não havia nada além de uma selva comum, densa e exuberante.

— Tem caminho uma ova. Será que leu essa bússola direito? —  resmungou Hermes.

— Não… Provavelmente seja assim mesmo. Olhe.

Kino gesticulou para Hermes olhar para baixo.

Dava para ver uma linha cor de ferrujem estreita entre os tufos de grama. Um pouco mais longe havia outra. E outra. E mais, enfileiradas lado a lado como…

— Trilhos? É um leito de estrada!

— Resposta correta.

Kino chutou o chão e, devagar, deu ré com Hermes.

— Deve ser isso que a pessoa que informou o caminho quis dizer com “deve dar tudo certo se for com um motorrad, cedo ou tarde vai sair numa estrada larga”. Deve ter pessoas usando este caminho pra sair da selva.

— Faz sentido. Mas, será que não passam trens?

— Tem grama crescendo e os trilhos parecem abandonados. Acho que não usam mais… E um e dois e…

Kino levantou a roda dianteira de Hermes entre os trilhos, em direção oeste. Olhando com atenção, a grama crescia em linha reta por toda a extensão dos trilhos, como se houvesse um caminho verde no meio da selva.

— Eu digo que tem algo errado. Não acha que errou nem um pouquinho nesse “caminho certo”, né, Kino?

Kino acenou com a cabeça e partiu com Hermes. Os trilhos faziam a roda dianteira sacudir, levando-os a correr com mais cuidado, sem poder aumentar muito a velocidade.

Kino e Hermes continuaram correndo, pisando e esmagando a grama que crescia robusta.

Então, quando o sol já estava no seu ponto máximo, encontraram um homem sozinho.

O primeiro a notá-lo foi Hermes.

♦♦♦♦♦

No momento em que saíram da leve curva que havia no meio da selva, Hermes se pronunciou.

— Tem alguém — comentou breve.

Kino também distinguiu a forma de um homem logo à frente e apertou os freios.

Aproximando-se aos poucos, eles foram percebendo um homem trabalhando em algo sozinho. Ele levantou seu rosto por poucos seguindos e voltou ao trabalho. Atrás dele estava estacionada uma pequena carroça com rodas iguais às de uma locomotiva e lotada de bagagens.

Kino parou Hermes pouco à frente do homem, desligou o motor e desceu.

— Boa tarde — Kino cumprimentou e o homem se levantou.

Era um senhor velho e baixinho. Tinha um rosto profundo, de traços bem delineados, mas com rugas e olhos acinzentados.

Seu cabelo branco comprido e sua barba também crescia sem cuidados. Ele vestia um pequeno chapéu preto. Suas roupas eram igualmente pretas e mostravam sinais de desgaste. Apesar de parecerem à primeira vista justas e resistentes, a camisa e as calças estavam remendadas aqui e ali.

— Olá, viajante — foi tudo o que ele disse.

Novamente, Kino tentou puxar conversa. E então percebeu uma coisa.

— Ah!  — Kino exclamou com considerável surpresa. Hermes também percebeu mais ou menos na mesma hora, então não disse nada.

O senhor virou-se lentamente e viu a mesma coisa que os dois. Devagar e com calma, voltou-se para Kino e Hermes e, sem querer, suspirou para os jovens que olhavam para ele:

— Sim. Esse é meu trabalho…

Kino observou o senhor por alguns segundos. Então, ao observar à sua frente mais uma vez, sussurrou.

— Não acredito…

Os trilhos seguiam até onde a vista de Kino e Hermes alcançava. E, entre eles, da grama que até então avançava desenfreadamente não se via nenhuma folha. Viam-se os pedregulhos espalhados de maneira organizada e as dormentes enfileiradas em uma ordem assustadoramente regular.

E as duas barras de metal brilhavam como se tivessem acabado de sair da fábrica. Recebiam a luz do sol e refletiam um lindo brilho escuro em cima e nas laterais. Seguiam até depois de onde Kino conseguia enxergar.

— Vão me perdoar, mas é difícil dar licença com essa carroça. Por favor, viajante. Poderia tirar o seu motorrad dos trilhos um momentinho?

— Como? Ah, é claro. Com toda a certeza — respondeu Kino num estado de confusão. Aproximando-se novamente do velho agachado, abaixou levemente a cabeça e perguntou: — Licença, tem perguntas que gostaria de fazer… Tem problema?

— O que seria? Se for algo que eu saiba responder.

— Err, o senhor, fez tudo… Cortar a grama e polir os trilhos, fez tudo sozinho? —  perguntou Kino gesticulando com a mão para os trilhos às suas costas.

— Sim. Porque é meu trabalho — respondeu o homem sem preocupações.

— Seu trabalho?

— Isso mesmo. Já tem muito tempo que faço isso. — O senhor conversava arrancando a grama que crescia a seus pés.

Kino olhou para a carroça. As bagagens pareciam conter os utensílios para o sustento básico do senhor. Kino virou sua cabeça para o Hermes uma vez e perguntou aquilo que provavelmente Hermes também queria saber.

— Mais ou menos quanto tempo é esse muito tempo?

— Uns cinquenta anos — respondeu sem prestar atenção.

— Cinquenta anos? —  perguntou Hermes de volta e bem alto.

— Não sei exatamente, não, mas deve ser por volta disso. É que eu só conto os invernos…

— …E nesses cinquenta anos, esteve sempre limpando os trilhos? —  perguntou Kino.

— Hã? É. Entrei na companhia ferroviária quando tinha dezoito. Naquela época, havia uma linha fora de uso, mas que poderia vir a ser usada, então me disseram para vir e polir os trilhos o máximo que pudesse. Como ainda não me mandaram parar, eu sigo polindo.

— O senhor nunca mais voltou ao seu país?

— Sim. Naquela época eu já tinha esposa e crianças. Eu tenho que alimentá-los custe o que custar. Me pergunto como será que eles estão. Meu salário deve estar chegando até eles. Mas acho que não devem ter problemas para viver.

Eles nao comentaram nada.

Kino e Hermes apenas ficaram parados em completo silêncio.

— E você, viajante, para onde se dirige? —  o senhor perguntou serenamente.

♦♦♦♦♦

Um motorrad corria no vão entre os dois trilhos brilhantes de metal.

Kino e Hermes estavam correndo desde o raiar do dia. Só descansaram um pouco quando encontraram um pequeno riacho e pegaram água.

O carril seguia pelo meio da selva fazendo curvas leves. Os pedregulhos cinzas criavam a estrada pela qual Kino e Hermes seguiam.

— O senhor velhinho de ontem foi uma bênção mesmo — Hermes agradeceu repetindo essa mesma frase pela enésima vez no dia. Com a grama fora do caminho e graças aos trilhos tão polidos que até refletiam o céu, eles puderam percorrer um caminho maior que no dia anterior. Kino e Hermes seguiam viajando sentindo a vibração rotineira dos dormentes.

Por volta da hora em que Kino começava a sentir fome encontraram um segundo homem.

Desta vez, quem percebeu primeiro foi Kino.

♦♦♦♦♦

Ao se deparar repentinamente com uma curva muito fechada, Kino freou de maneira igualmente repentina. Hermes também logo percebeu que em cima dos trilhos havia outra carroça e que ao seu lado havia um único homem.

O homem virou-se parecendo surpreso, apoiou na carroça a ferramenta parecida com uma vara comprida que segurava e mostrou a mão aberta pedindo para que freassem.

Kino estacionou Hermes pouco à frente do homem, desligou o motor e desceu.

— Boa tarde — cumprimentou Kino curvando-se um pouco.

— Sim, boa tarde, viajante

O homem era um senhor de idade. Mais alto que Kino, magricela e com um jeito desengonçado. Um pequeno bigode crescia em seu rosto. Começava a ficar calvo na parte dianteira da cabeça e usava um pequeno boné.

Parecia-se com o senhor do dia anterior, ambos vestiam o mesmo uniforme preto de cima a baixo. E assim como aquele que viram antes, este também estava coberto de remendos por todos os lados.

Novamente, Kino tentou puxar conversa. Nesse momento, Hermes percebeu algo:

— Kino! Os trilhos!  — gritou. Os trilhos? Kino repetiu a mesma frase em tom de pergunta e inclinou um pouco o seu corpo. Dessa maneira pôde ver além da carroça e percebeu que, repentinamente, o carril parava ali. Não havia mais dormentes. Apenas os pedregulhos seguiam adiante pela selva.

— Os trilhos acabaram…

— Sim. Eu desmontei — o senhor respondeu ao murmúrio de Kino. E Kino ficou ali, em pé e em choque.

— Sinto muito, mas não posso desviar a carroça. Por favor, poderiam desviar vocês? — pediu, voltou a pegar a vara comprida, balançou sua ponta bem de leve para frente e para trás e voltou para trás da carroça.

Kino prontamente ligou Hermes, subiu por cima dos trilhos e foi do mesmo modo para trás da carroça.

O senhor introduziu a ponta de sua vara de ferro em baixo de um dos lados do carril. — Lá… vai! — junto com seu grito, apoiou todo o seu peso na vara. O trilho se desconectou e rolou de lado por cima da pequena montanha de pedregulhos até o chão.

Ao observar com atenção, havia vários trilhos desconectados pela frente. Estes haviam sido cobertos pela terra avermelhada da selva e não brilhavam mais. O senhor desmontava o outro lado do trilho.

— Licença, gostaria de fazer algumas perguntas… — pediu Kino. O homem virou-se em sua direção. — Por que está desmontando os trilhos?

— É meu trabalho. Faço isso tem muito tempo. Também tiro os dormentes.

Hermes comentou — Sinto que isto não vai terminar bem — de maneira que só Kino ouvisse.

— Mais ou menos quanto tempo é esse muito tempo?

— Se passaram uns, cinquenta anos, talvez? Não sei tão certinho.

Silêncio.

— Me juntei à companhia ferroviária quando tinha dezesseis, tinha esta linha que não estava sendo usada e, como não precisavam mais, me mandaram desfazê-la. Foi meu primeiro emprego, então vim com todos os ânimos. Ainda não me mandaram parar.

— E nunca voltou ao seu país?   — perguntou Hermes.

— Sim. Eu tenho cinco irmãos mais novos. Preciso trabalhar pra botar comida no prato deles. Não preciso de folgas.

— É mesmo? — disse Kino e depois perguntou como quem não sabia de nada: — Para um trilho que não se usa há tanto tempo, ele está muito bem cuidado, né?

O homem respondeu.

— Pois é, é sempre assim. Incrível, não acha? Mas por causa disso meu trabalho é muito mais fácil.

Nenhum dos dois se atreveu a dizer algo.

E sem quebrar esse silêncio, ambos ficaram ali, parados.

— E você, viajante, para onde se dirige?  — perguntou o senhor com toda a serenidade.

♦♦♦♦♦

Um motorrad corria pela estrada de pedregulhos.

Kino e Hermes estavam correndo desde o nascer do sol. Quase não pararam para descansar.

A estrada seguia relativamente reta pelo meio da floresta. Nas laterais estavam os trilhos desmontados, e os dormentes removidos espalhavam-se pelo chão. As espigas que antes seguravam os trilhos no lugar estavam amontoadas em grandes pilhas a cada certa distância.

— Assim complica viajar… —

Kino reclamou repetindo essa mesma frase pela enésima vez no dia.

Sem os dormentes, o caminho de pedregulhos não havia tração suficiente para as rodas da moto, e derrapavam com a mais mínima inclinação durante as curvas. Chegou ao ponto de Kino precisar controlar a velocidade e dirigir nervosamente com as mãos no guidão.

Perto da hora em que Hermes propôs um descanso, toparam com um terceiro homem.

Kino e Hermes o notaram ao mesmo tempo.

♦♦♦♦♦

Ao longe da estrada de pedregulhos que seguia indefinidamente podiam avistar a figura de uma pessoa.

Como Kino voltou a acelerar, Hermes não disse nada.

Ao se aproximarem, viram o homem sozinho, descansando sentado em cima dos pedregulhos. Ao notar Kino e Hermes, ele acenou grandemente.

Kino parou Hermes pouco à frente do homem, desligou o motor e desceu.

— Boa tarde.

— Olá, viajante! — respondeu o homem levantando-se.

Era um senhor de idade, mas de físico robusto. Não vestia nada na parte de cima, e seus músculos eram aparentes nos braços e nos ombros. Não fosse pelas rugas visíveis cobrindo seu rosto, seria possível dizer que ainda estava na flor da idade. Vestia a mesma calça preta que os senhores dos dois dias anteriores. Sua barra estava esfarrapada.

Novamente, Kino tentou puxar conversa. Ao fazer isso, Kino e Hermes perceberam algo simultaneamente:

— Trilhos! — Trilhos! — admiraram em uníssono.

Na carroça lotada de bagagens logo atrás do homem havia uma abertura. Por ela podiam ver que começavam trilhos, e que estes desapareciam depois da selva.

O homem explicou enquanto levantava no ombro o martelo gigante ao seu lado.

— É. Eu que montei — disse alegre.

— Está consertando?

— Sim, estou. Para que os trens possam passar. Vou assentando os dormentes, coloco os trilhos por cima e termino com as espigas.

— Faz tudo sozinho?  — perguntou Hermes.

— Que isso, é só acostumar que sai num instantinho. Já tenho todos os materiais logo aqui. Olha aí, aí e ali!

O senhor apontou para os dormentes, os trilhos e as espigas.

— Eu sinto que isto não vai terminar nada bem — cochichou Hermes baixinho.

Kino perguntou:  — E isso… é seu trabalho?

— Certamente, é isso mesmo. É tem tempo. — — respondeu o senhor rindo.

— Esse tem tempo…

— …Juntando tudo deve dar uns cinquenta anos? Sou um pouco ruim contando.

Ambos não comentaram nada.

— Consegui emprego na companhia ferroviária quando tinha quinze anos. Naquele então consideravam a ideia de voltar a usar uma velha linha de trem e para isso me mandaram consertá-la. Só que ainda não me mandaram parar.

— E parece que ainda não pôde voltar ao seu país, correto?  — perguntou Kino buscando confirmação.

— É por aí. Meus pais estão doentes. Eles não podem mais trabalhar então eu tenho que trabalhar por três.

— É mesmo? — disse Kino e logo Hermes acrescentou indiferente:

— Siga se esforçando no seu trabalho!

— E vou, obrigado. Em silêncio, Kino deu a partida no motor de Hermes.

— E você, viajante, para onde se dirige?  — perguntou o senhor com um sorriso de orelha a orelha.